A Espiritualidade Travesti é uma catástrofe, uma destruição. É o que faz uma torre desmoronar, é o baralho desse desmoronamento, é a penumbra que inicia com a poeira dos destroços, mas nunca será os destroços. Não somos o resto do que se partiu, mas sim o que fez se partir."
- Castiel Vitorino Brasileiro1


Logo, eles cairão. Aqueles que desejam governar os corpos e aprisionar as imaginações, cairão. Lançados ao abismo pela força de sua própria destruição, nunca esteve tão claro que a queda é uma questão de tempo. Mas quanto tempo pode durar a decadência? Este é um espaço de ensaio e especulação, reunindo seis novas obras cujas proposições aceleram a inevitável ruína do presente e vislumbram o que dela pode emergir.

Ainda que todas as artistas se reconheçam como travestis, a exposição não pretende representar uma identidade ou introduzir uma tradução de experiências. Ela surge, pelo contrário, da urgência de prover espaço para que existências múltiplas e movediças experimentem e ocupem a arte de maneira estratégica: pressentindo as fissuras, lacunas e rotas na sua produção e recepção. Neste momento de mudança, as artistas articulam formas saudáveis de habitar e transformar coletivamente o terreno desconhecido e imprevisível que é o futuro.

Ana Raylander Mártis dos Anjos, tão perto, tão longe (A, B e C), 2020, Três portas dos banheiros do Bar e Cachaçaria Cuca Grande (Bar do Fabinho), três placas de espelho com coordenadas geográficas do local, 210 x 62 x 7 cm (portas) 4 x 25 cm (placas).

Frestas inesperadas surgem de encontros capazes de mudar percepções e questionar pressupostos, encontros que se perdem nesta cidade obcecada pela novidade, onde a todo momento escuta-se o ruído da demolição. Para resgatar o que foi silenciado, Ana Raylander Mártis dos Anjos apresenta tão perto, tão longe, um conjunto de três portas removidas de um bar do centro de São Paulo. Símbolos de um espaço carregado de violência assim como de intimidade, elas procuram delimitar o público e o privado, no entanto estão saturadas de vestígios que contrariam precisamente tal função.

Em sua atual pesquisa, Mártis dos Anjos investiga camadas de tempo não-lineares sobrepostas nas mensagens, demandas e comunhões anônimas que surgem e desaparecem na superfície fronteiriça. Embora a gentrificação do centro traga consigo os tradicionais mecanismos higienistas de apagamento, o projeto reafirma a resiliência do trânsito e seus rastros inevitáveis, resíduos familiares ainda que distantes, ausentes e abundantes, expressivos e incompreensíveis.

TRANSÄLIEN, TRANSVER, 2020, Fine art 3D, base ACM, palha, penas de pavão, glitter, tinta spray e guache, papelão, tecido filó, guardanapos, gelatina, carvão, Variáveis ​​de dimensões (3D 95 x 95 cm).

Visibilidade não é, afinal, um conceito simples. Uma pessoa observada não é necessariamente vista, reconhecida ou aceita. No país mais perigoso para pessoas trans, onde a expectativa de vida é de 35 anos, não se conformar às expectativas de gênero, assim como ser pobre, preta ou indígena, é existir entre a invisibilidade e a hipervisibilidade, o silenciamento e a vigilância. A visibilidade muitas vezes está relacionada a imagens de sofrimento, potenciais instrumentos de medo e isolamento. TRANSÄLIEN, em TRANSVER, parte da força do pertencimento para contrapor o colapso nacional à prosperidade travesti.

Composta por duas máscaras e uma imagem 3D transformada de acordo com a máscara escolhida pelo observador, o que enxergamos em TRANSVER dependerá da posição que ocupamos e, acima de tudo, dos olhos que possuímos. A função da máscara não é esconder. Ao contrário, ela é um instrumento de revelação que desafia o impulso de categorizar. Solicitar à audiência o uso da máscara reflete a própria existência da artista: TRANSÄLIEN utiliza diariamente dispositivos semelhantes a fim de libertar o imaginário popular da normatividade cisgênera, vislumbrando novas possibilidades estéticas fundamentadas na compreensão da vida como processo de transformação contínuo.

Lucyfer Eclipsa, Anamnese: Distorções Oníricas, 2020, Pregos, pelúcia, plástico, resina, lã, Variáveis ​​de dimensões.

O gesto questiona o que surgiria se nossos corpos e imaginações estivessem libertos dos inalcançáveis e cafonas padrões de beleza, comportamento e desejo impostos desde a infância. Corpos dissidentes, ao contrariá-los, são frequentemente descritos como anormais, monstruosos. Em Anamnese: Distorções Oníricas, Lucyfer Eclipsa investiga os sonhos e pesadelos que permeiam as memórias de sua infância. Ao combinar materiais ora delicados, ora cortantes, a artista explora a monstruosidade através reelaboração dos sentidos da própria história, convertendo traumas e fraturas do passado em próteses e apliques, processo que produz objetos ambíguos atravessados por signos da mutação, criaturas de uma ficção biopolítica que celebra a mutabilidade e a regeneração. Através dessas figuras lúdicas que parecem existir em permanente estado de metamorfose, Eclipsa evoca a beleza de localizar-se além dos territórios definidos.

Bruna Kury, Escorpiônikas, série escorpiônica, 2020, Imagem digital em metacrilato, dildo-faca (vidro, resina, aço, terra, plástico), bíblia (bíblia, silicone, cera), Variáveis ​​de dimensões.

As normas narcisistas que constroem diferença como patologia são suportes de um sistema que demoniza o “outro”, embora o explore e consuma incansavelmente. Na obra de Bruna Kury, a resistência à violência transfóbica, racista e patriarcal é construída a partir de um comprometimento com a própria vulnerabilidade. Em Eskorpiônikas, Kury apresenta fabricações como o dildo-faca, objeto que inverte e subverte signos ao constituir-se simultaneamente como celebração do prazer e arma de contra-ataque, um mecanismo de autodefesa que desafia o olhar castrador e a objetificação de corpos dissidentes.

A instalação é acompanhada de vídeos com arquivos de performances em que Kury mergulha nas tensões entre poder e prazer e suas implicações corporais, despertando reflexões acerca da violência de gênero, propriedade e cuidado. Ao reelaborar práticas do pós-pornô2 no contexto do transfeminismo latino-americano, Kury reverte a passividade atribuída ao feminino e confronta o desejo de controle de vidas desobedientes,3 desejo que é combustível das políticas de genocídio vigentes, como o desmantelamento do sistema de saúde público, o encarceramento em massa, a incitação ao ódio e a violência policial.

Castiel Vitorino Brasileiro, Quem é você para deitar em minha cama Cama, 2020, Cama, colchão, tecido impresso, terra, sal, cristais, ervas, alguidar, Variáveis ​​de dimensões.

Castiel Vitorino Brasileiro, cuja produção parte também do cuidado e afirmação da vida, mapeia o corpo a fim de compreender as fontes de poder que o compõe. Alicerçada neste saber, a artista busca alimentar reservas de criatividade, sensualidade e coragem exauridas pela violência colonial, para que corpos negros e travestis permitam-se experimentar a liberdade e a cura. Quem é você para deitar em minha cama é uma instalação performativa na qual terra, cristais e ervas estão dispostos ao redor de um colchão impresso com uma foto da artista durante um ritual de limpeza e equilíbrio do primeiro chakra (chakra raiz), o ponto focal responsável pelo firmamento do corpo.

Quem é você para deitar em minha cama é fragmento de um ponto cantado às pombas-giras; entidades espirituais fortes, sensuais e perspicazes que em vida desafiaram inquisições racistas e patriarcais. Através da macumbaria, Castiel Vitorino penetra o invisível para entender como fertilizar os territórios da existência. Ao explorar profundos pontos de energia, efêmeras localidades de caos e clarividência, medo e coragem, a artista atualiza conhecimentos ancestrais para processar os venenos de uma sociedade adoecida.

Vulcanica Pokaropa, Intercessão, 2020, Tinta acrílica, bula de hormônio, imagens sacras, madeira, cipó, sementes, navalhas, cabelo orgânico, tecido, vela, flores, ervas, Variáveis ​​de dimensões.

Segundo a escritora e teórica Gloria Anzaldúa, os humanos são ensinados a temer o supernatural: tanto o profano, impulsos animais como a sexualidade e o inconsciente, como o divino em cada um de nós.4 Em Intercessão, Vulcanica Pokaropa, inspirada em sua longa vivência no cristianismo, cria um altar de travestis santificadas, reconhecendo não apenas a dignidade inerente, mas afirmando também que esta é uma comunidade sagrada.

Combinando elementos do catolicismo a símbolos associados ao universo travesti, como lâminas, saltos altos e seringas, a instalação reúne oratórios em que o profano e o divino são uma só entidade. Assim, Intercessão honra ancestrais historicamente apagadas cujo legado formou o solo de possibilidades do presente e deposita a fé no futuro das existências dissidentes. Costurando temporalidades, Vulcanica reconhece o poder da devoção na materialização da promessa, mas inverte a lógica racista que designa aos homens brancos o papel de salvador. Segundo a artista, um futuro no Brasil desconectado das religiões cristãs é improvável, mas, se Jesus voltasse hoje, seria uma travesti preta.

As seis instalações tecem sentidos atravessados pelas poéticas da interdependência, apropriação e metamorfose, entrelaçadas por uma luta coletiva que move as estruturas de poder, as relações e a produção dos afetos. É difícil dizer se esta cidade — com suas grades e muros, prédios vazios e crescentes multidões nas ruas — poderá transformar-se em um local que deixe de obstruir e passe a fortalecer tais alianças de resistência, pois alianças demandam o compartilhamento de riscos, recursos e um território comum.

Enquanto a violência encerra mundos e constrange sonhos, a resistência é uma força de abertura, mobilidade e criação. A mudança é inevitável. Ao reconhecer a potência aqui reunida, compreendemos não apenas que a queda está próxima, mas como ela necessariamente anuncia a chegada de outro tempo, que não está à frente, como o futuro linear do progresso incansável, mas se move abaixo, acima, ao redor, dentro e antes deste, um futuro que será, certamente, tempo de travesti.

Nossos inimigos dizem: A luta terminou.
Mas nós dizemos: ela começou.

Nossos inimigos dizem: A verdade está liquidada.
Mas nós dizemos: Nós a sabemos ainda.

Nossos inimigos dizem: Mesmo que ainda se conheça a verdade
Ela não pode mais ser divulgada.
Mas nós a divulgamos.

É a véspera da batalha.
É a preparação de nossos quadros.
É o estudo do plano de luta.
É o dia antes da queda
De nossos inimigos.
– Bertolt Brecht


Clarissa Aidar
Open Call Exhibition
© apexart 2021

1. Castiel Vitorino Brasileiro, “Exú Tranca Rua das Almas,” Ehcho, 2020, bit.ly/3wjk5FU (Eng. Trans. for this publication by Clarissa Aidar).
2. A transfeminine gender identity rooted in Latin America. It carries implications of class struggle and marginalization, which often lead to compulsory sex work.
3. Postporn theory assembles different practices that challenge mainstream beauty, desire, and filming aesthetics. It is centered on bodies that are marginalized and fetishized by the pornography industry and first originated in Annie Sprinkle and Veronica Vera’s Post Porn Modernist Manifesto, 1989.
4. See Jota Mombaça’s Towards a Gender Disobedient & Anti-Colonial Redistribution of Violence, (Down and Out Distro, 2019), Accessed March 18, 2020, https://downandoutdistro.noblogs.org/files/2019/05/Redistribution-violence-1-1.pdf. 5. Afro-Brazilian religious practices.
6. Gloria Anzaldúa, Borderlands / La Frontera: The New Mestiza (San Francisco: Aunt Lute, 1987).
7. Bertolt Brecht, “Unsere Feinde Sagen,” Gedichte 1926-1933, Frankfurt: Suhrkamp, 1990 (Eng. Trans. for this publication by Clarissa Aidar).
 

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