Em um país onde as mulheres não têm autonomia sobre seus corpos e onde os partidos políticos de extrema direita promovem e avançam com políticas conservadoras, neoliberais e patriarcais, é essencial lançar luz sobre iniciativas independentes dentro da sociedade civil que rotineiramente lutam pelos direitos das mulheres. É sob essa influência que os movimentos feministas em todo o Brasil declaram: Legalize, é o nosso corpo, é a nossa escolha, é pela vida das mulheres!

E ao mesmo tempo? em que presenciamos a ascensão da agenda feminista, também vivemos sob a influência de lideranças político-religiosas que se apropriam e distorcem a discussão sobre a descriminalização do aborto. A negligência em nosso congresso faz com que as mulheres sofram em todas as instâncias, desde debates sobre sua saúde até a autonomia sobre seus corpos. O que deveria ser uma discussão sobre saúde pública é um debate sobre religião e criminalidade.

O tema do aborto sempre foi tratado por essa ótica no Brasil, esse olhar já era regulamente perpetrado por influência da igreja católica, mesmo em governos progressistas, e tem se intensificado devido à crescente presença de fundamentalistas religiosos em todas as esferas do governo e da sociedade brasileira nos últimos anos. Mesmo sob a constituição de um Estado laico, as atividades dos poderes judiciário e federal, têm sido amplamente desfavoráveis ​​aos avanços dos direitos reprodutivos das mulheres sobre a justificativa de dogmas religiosos. Como consequência disso, desde 2011 até os dias atuais, cerca de 80% dos projetos de lei que tratam sobre o tema do aborto têm como foco o aumento da criminalização.1

Segundo estudo do governo federal, entre 2016 e 2020, 8.665 abortos foram autorizados pela Justiça. Isso significa que cada uma dessas interrupções atendeu a pelo menos um dos três critérios que legalmente permitem que uma mulher interrompa uma gravidez: quando o feto é anencéfalo; quando a mulher engravida em decorrência de violência sexual; ou ao fazê-lo representa a única forma de salvar a vida da gestante. Enquanto isso, nesse mesmo período, o sistema de saúde do Brasil, conhecido como Sistema Único de Saúde (SUS), atendeu cem vezes mais mulheres (877.863) que sofreram abortos espontâneos ou complicações em procedimentos de aborto realizados fora dos hospitais.2 Estima-se que aproximadamente 500.000 abortos ocorram anualmente no Brasil.3

Fundado em 2020 pela cineasta Juliana Reis, no segundo ano de um governo marcado pelo declínio das políticas públicas progressistas de saúde e pelo crescimento da agenda antigênero, o Milhas Pela Vida das Mulheres é uma iniciativa de solidariedade para ajudar mulheres que desejam interromper uma gravidez de forma segura e legal. O projeto atua removendo barreiras financeiras, logísticas e a falta de informação sobre esse assunto tratado como tabu. Somos uma rede de mulheres que defendem a descriminalização do aborto no Brasil, unidas sob o lema: “Quem pode, ajuda quem precisa”.

Em novembro de 2020, o Milhas iniciou o projeto Art for Women’s Lives/Arte, Substantivo Feminino, que tem como intuito arrecadar fundos e contribuir para o debate sobre a descriminalização do aborto no Brasil por meio da arte. Arte, Substantivo Feminino é uma ação concebida pela força de trabalho de mulheres e que visa salvaguardar os direitos reprodutivos das meninas e mulheres brasileiras. Com curadoria de Gabriela Davies, Maíra Marques e Paula Borghi, o projeto apresenta trabalhos de 23 artistas visuais que variam de geração, raça, religião, classe social e local de nascimento, e que demonstram que o aborto afeta mulheres em diversas demografias. No Brasil, uma em cada cinco mulheres fez ou fará pelo menos um aborto até os 40 anos.4

Arte, Substantivo Feminino tem se desenvolvido de diversas formas: através da venda de obras de arte para arrecadar fundos para as atividades do Milhas; por meio da apresentação explícita de artistas a favor da descriminalização do aborto; por meio da participação em debates nacionais e internacionais sobre arte e aborto; em feiras de arte e em uma ativação artística na vitrine de uma galeria no centro do Rio de Janeiro com a hashtag #abortolegaleseguroparatodes.

Desta forma, a exposição Arte para das Mulheres é uma nova experiência resultante do empenho deste grupo de mulheres que trabalham juntas desde novembro de 2020. É uma exposição multidisciplinar que inclui vídeo, fotografia, pintura, escultura e performance. Suas obras examinam situações e experiências que aprisionam e distorcem as mulheres em todas as instâncias: corporais, psíquicas e espirituais. Vinte e três artistas respondem à opressão patriarcal que coloniza os corpos das mulheres há séculos. Por mais diferentes que sejam as artistas, se um dos fundamentos do pensamento feminista é a afirmação de que “todas as mulheres são oprimidas”, isso significa que todas compartilham uma experiência comum.

Essa força de opressão é visível nas obras apresentadas na exposição. Revela-se através da ideia de aprisionamento corporal sugerido na escultura de Agrade Camíz, feita com grades de janela envolvendo um espelho para que a espectadora possa se ver entre as grades; e na videoinstalação Cam Girl de Aleta Valente, em que a artista apresenta exames clínicos de endoscopia e histeroscopia. Referindo-se à prática de “cam girls”, em que as mulheres recebem pagamentos para produzir vídeos íntimos de seus corpos por meio de chats virtuais de webcam, Aleta apresenta a imagem do interior de seu corpo, para contrariar a imagem objetificada à qual as mulheres costumam estar aprisionadas.

Contribuindo para a crítica à fetichização e objetificação do corpo feminino, Débora Bolsoni apresenta O inferno de boazinha, escultura que trata a saia plissada do uniforme escolar como uma cortina que pode ser aberta e fechada. A obra desperta o espectador para uma narrativa perversa que resulta na hipersexualização das meninas. No Brasil, meninas menores de 14 anos têm permissão legal para acessar o aborto, pois nessa idade são consideradas jovens demais para consentir e, portanto, essas gestações se enquadram no âmbito do estupro estatutário e da violência sexual.5 Apesar dessa medida protetiva, em 2019 foram realizados menos de 2.000 abortos legais no país (em mulheres de todas as idades), enquanto no mesmo ano ocorreram 19.330 partos de meninas que poderiam ter acesso legalmente a esse direito. Isso significa que a cada 30 minutos em 2019, uma menina de 10 a 14 anos se tornou mãe.

Abordando os cruzamentos demográficos e transversais do abuso de gênero no Brasil, a fotografia de Juliana dos Santos, Catirina, faz referência a uma personagem escravizada do folclore brasileiro. Aplicando tinta preta sobre um retrato de seu rosto, a artista chama a atenção para a prática essencializante e aviltante do blackface, que há anos é usada em cerimônias folclóricas na representação da personagem. Apesar de ser um país cuja população é predominantemente não branca, o racismo está estruturalmente presente no Brasil, e uma das consequências diretas do racismo estrutural é o fato de as mulheres negras e indígenas serem as principais vítimas de feminicídio, violência doméstica, violência obstétrica e do aborto inseguro no país. O que mata não é o ato do aborto em si, mas a vulnerabilidade médica criada pelas condições perigosas do aborto clandestino.6

Falando ainda sobre a violência estrutural vivenciada por mulheres negras, Kalor apresenta o vídeo Certificado de Aborto, que ela executou e gravou após um aborto espontâneo que sofreu. Na época, o sistema público de saúde contestou se o aborto havia sido espontâneo ou causado pela artista, questionando a veracidade das afirmações dessa mulher sobre o próprio corpo. Como se não bastasse a violência desse questionamento, a artista passou por graves descasos e maus-tratos durante o processo de curetagem; como se isso fosse um castigo pelo aborto que sofrera. Esse trauma foi registrado em um artigo escrito pela artista para o jornal de sua cidade, bem como materializado em sua performance e neste vídeo.

Reconhecer e modificar padrões sociais e sistemas de opressão é uma tarefa contínua. É com essa consciência que a Arte pela Vida das Mulheres reforça a conscientização e a importância do acesso ao aborto legal, seguro e gratuito por meio da arte. Consideramos este um projeto contínuo, agregador, expansivo e permanente, até que cada pessoa tenha o direito humano inegociável de determinar se, quando e como criar uma família. Como ressalta Caroline Valansi em seu trabalho, a sexualidade deve ser tratada com atenção em momentos de grande estresse social. É acreditando nisso que seguimos juntas e sem medo.

Milhas Pela Vida das Mulheres
Open Call Exhibition
© apexart 2023

 

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